domingo, 9 de janeiro de 2011

Memórias; Recordar é viver na Lapa

No site São Paulo Minha Cidade (Prefeitura de São Paulo) encontramos o seguinte depoimento sobre a Lapa de outrora. São lembranças de Vera Morata
 
"Para mim, a Lapa sempre foi um bairro belíssimo, cheio de charme, com muitas ruas de paralelepípedos. Existe paisagem mais romântica do que rua de paralelepípedo, sobretudo quando é à noite e com aquela umidade no chão depois de uma boa garõa?

Nos anos 1980, eu e meu então namorado, atual marido, com freqüência pegávamos o ônibus a partir da Estação Vila Mariana do metrô e íamos até o bairro que, para mim, tem cheiro de família reunida. Passeávamos pelas ruas... Apenas olhando os detalhes, as ruas menos movimentadas. É incrível o quanto se vê quando as pessoas não estão à nossa frente, correndo nervosas, reféns do relógio. Perto do ponto final, o ônibus já quase vazio, olhávamos mais, buscando novos e preciosos detalhes. Os nomes das ruas são interessantíssimos: tem a Rua Roma, a Tibério, a Faustolo, a Trajano, a Coriolano, a Caio Graco... Enfim, estão concentrados ali imperadores e reformistas, como o próprio Caio Graco, que na Roma republicana, lutou pela realização da reforma agrária... Mas não conseguiu convencer os senadores e latifundiários a dividir a terra em benefício das massas.

Na infância freqüentei muito a Rua Caio Graco. Ali, numa vila, morava o meu tio Pedro, irmão da minha avó. Visitávamos a casa preferencialmente aos domingos e sempre com muita conversa animada, harmonia e novidades. Meu pai, o tio Pedro e alguns filhos e genros jogavam cartas animadamente. Eu achava aquela casa o máximo! Tinha vida, alegria e uma longa história de luta. O tio Pedro era filho de imigrantes italianos e havia sofrido muito em São Paulo. A família era numerosa e muitos filhos do tio Pedro eram metalúrgicos. Na cozinha, um pingüim sobre a geladeira Frigidaire era o maior charme.

Até hoje adoro esses pingüins... Separando a cozinha da área de serviço, uma cortina de plástico com tiras coloridas. E tomávamos café com um pão quentinho... Ah! Não tem pão mais gostoso que o feito nas padarias da Lapa...
Mas uma vez, na casa dele, a tristeza se apresentou para nós com lágrimas amargas nos olhos de uma das primas, que lutava para sorrir e receber as visitas. O irmão dela se tornara preso político. Era o ano de 1969... E só quem viveu o período sabe o que é terrorismo de Estado...

Esse primo estava sendo torturado e eu, na época com meus onze anos, não me esqueci mais daquele dia, daquela cena, dos olhos vermelhos e da tentativa de dizer que tudo estava bem. Fiquei perturbada demais com tudo aquilo.

Durante um tempo, fiquei fora da casa, sentada sozinha na calçada daquela vila, com um livro na mão, pois no dia seguinte eu ia ter prova e queria estudar um pouco mais. Não consegui estudar e fiquei pensando no fato. E sei que, a partir daquele momento, a palavra injustiça, para mim, passou a ser a mais perversa, a mais hedionda possível, a mais abominável: a negação das liberdades individuais, a negação do ser em nome do Estado. Muito das minhas decisões políticas e da minha visão de mundo tiveram origem ali, na casa do tio Pedro, na Rua Caio Graco.

E nos anos 1980, meu atual marido e eu caminhávamos por ali... Procurando história pelas placas de ruas, nas construções. Conhecemos uma pizzaria muito especial na Rua Trajano. Eu nunca estive numa pizzaria tão simples. Com dois andares, fomos logo nos acomodar no andar de cima e nunca comemos uma pizza de frango tão gostosa. E com guaraná Brahma bem gelado! A outra metade era de calabresa, mas... Que tristeza... Tinha muita cebola...

Hoje, passeando por ali, como fizemos nas férias de 2006, paramos numa das padarias em pleno primeiro de janeiro... E comprei pão, inclusive pão de mel... E comemos no carro mesmo. Eu não tive paciência de esperar chegar em casa para comer o pão com cabe caboclo. Aliás, o gosto da comida é fundamental para sentirmos o sabor das almas, o aroma, o gosto pelo lugar. Não é por acaso que o brilhante escritor, o dominicano Frei Betto, aliás, um outro preso político da ditadura, diz que não é por acaso que, dentro da boca, existe um pedaço chamado céu.

Céu da boca... Céu da Lapa... Céu de São Paulo... Tudo se junta, nem sempre harmoniosamente, e me mantém viva, atuante, militante pela dignidade, pois foi aí que também aprendi que corpo e alma se mesclam para a construção da beleza... Infinitamente".

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