segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Religião - Trabalho e fé nas oficinas da SPR


No trabalho"A influência das representações religiosas no processo de aprendizagem do sujeito" , João Clemente de Souza Neto e Yara Schramm (Programa de Pós Graduação FIEO e Mackenzie, respectivamente), mostram como a prática religiosa contribui para a construção de um tecido social. Nesse sentido, os pesquisadores resgataram relato do operário José Joaquim (1908-1983), ferroviário das oficinas da São Paulo Railway, na Vila Anastácio.

Arrumei trabalho na seção de caldeiraria das oficinas da SPR, na Lapa. Foi lá que trabalhei até 1943. Minha mãe também controlava uma passagem de nível da ferrovia, em Vila Anastácio, e ali nos instalamos num vagão de trem. 

Numa São Paulo agitada por constantes movimentos por melhores condições de trabalho e de vida, os operários se reuniam à hora do almoço, para discutir direitos trabalhistas. No que diz respeito à religião, a confusão era muito grande. Os protestantes faziam proselitismo, para aumentar o número de adeptos; a doutrina espírita kardecista se confundia com o Evangelho; o sincretismo religioso era camuflado pelas devoções aos santos. Isto tudo, sem falar no aumento do secularismo e do ateísmo.

Eu observava a superficialidade e a ignorância dos batizados sobre Deus e a doutrina da Igreja. Essa situação tornava mais difícil aos católicos a vivência do batismo. Sem o necessário conhecimento, eles acabavam na prática do sincretismo e da superstição, mais do que dos ensinamentos do Mestre e do Magistério da Igreja. Eu via nesses fatos um apelo de Deus e um clamor do mundo. Sentia que o Evangelho devia ser anunciado e explicado para todos, de forma a exigir a conversão e vida, e numa linha profética, para ajudar a avaliar a vida e levar à mudança de comportamento. 

Na caldeiraria, eu me preocupava com a evangelização, com o melhor lugar e a melhor forma para anunciar Jesus Cristo. Minha idéia era de que o melhor espaço para isso não estava nas igrejas, mas ali mesmo. Aos poucos, comecei a explicar aos companheiros de trabalho que os direitos que eles reivindicavam já estavam organizados na Palavra de Deus. Passei a convidá-los para que se conscientizassem de sua fé e começamos a estudar religião, uma vez por semana. Eu almoçava em dez minutos e me reunia com alguns colegas num vagão de trem, para refletirmos sobre a Palavra de Deus.

Havia sempre alguns que eram contrários e procuravam me provocar, para que eu desistisse. Um dos chefes, sempre que estávamos reunidos, aparecia na porta do vagão e gritava: ‘Porca la madona!’ Com toda calma, eu lhe explicava que essas palavras eram uma blasfêmia contra Nossa Senhora. E aproveitava para orientar o grupo. Mas, seja por brincadeira, seja ou provocação, talvez até para se comunicar, ele gostava de repetir semanalmente esse mesmo gesto e palavras.

Um dos pintores das máquinas, que se tornou um dos membros do meu grupo de catequese, de vez em quando comentava algumas coisas do tempo de evangelização na oficina. Ele achava “fora de série”, quando alguém pegava um prego do chão da oficina para levar para casa, e eu lhe dizia que esse objeto não lhe pertencia, tanto fazia ser algo grande ou pequeno, não devíamos pegar o que não era nosso. Esse é só um entre muitos exemplos. O interessante é que alguns colegas de trabalho me respeitavam e passaram a se comportar de acordo com minhas orientações. Ganhei até o apelido de Zé Padre.

Alguém poderá considerar uma alienação essa forma de orientar operários. Eu diria que é uma postura ética. Assim como devemos lutar pelos nossos direitos, também não podemos pegar o que não é nosso. Não justifica a corrupção o fato de não termos nossos direitos respeitados. O Evangelho nos permite criar uma cultura do direito e expurga as práticas de corrupção. O homem público e o trabalhador devem viver do seu salário e lutar para conquistar o bem comum e a melhoria da qualidade de vida.

Na fundição, eu exercia grande influência. O número de companheiros que freqüentavam minhas reuniões de formação, apesar de pequeno, era bom e freqüente. Aí preparei muitas pessoas para a primeira Eucaristia. Outras, embora não se tenham convertido, tornaram-se melhores. E muitos, que insultavam a religião, passaram a respeitá-la. De fato, começou a se criar uma mentalidade diferente sobre religião e vida. Devagar, eu também me compenetrava de que os relacionamentos, pessoais, sociais, religiosos e profissionais, quando bem aproveitados, podem ajudar a realizar um excelente apostolado. (Souza Neto, J. C. e Schramm, Y., 2005, pp. 342-43)”.

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